segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

DAS FRASES QUE NOS ENCANTAM E DOS AUTORES QUE SE ESQUECEM.

"As pessoas não morrem, ficam encantadas." (Guimarães Rosa)



No dia 12 de junho de 1937, ao tomar posse na Cadeira nº 2 da Academia Brasileira de Letras (ABL), o jovem (49 anos) escritor, diplomata, ex-ministro do Exterior e advogado João Neves da Fontoura teceu uma frase lapidar, que, descontado o saudável excesso, deveria causar algum orgulho a nós maranhenses. Falando sobre seu antecessor na referida Cadeira patroneada pelo dramaturgo paulista Álvares de Azevedo, disse Fontoura:

"Não houve melhor brasileiro do que Coelho Netto".

Coelho Netto, escritor caxiense, havia sido o fundador (primeiro ocupante) da Cadeira nº 2 da ABL. Com o falecimento de João Neves da Fontoura (o segundo ocupante) em 31 de março de 1963, o terceiro a ocupar a Cadeira seria também um outro ilustre -- ilustríssimo -- João: o escritor mineiro João Guimarães Rosa, da cidade do coração, Cordisburgo.

Depois do discurso de recepção, feito pelo igualmente ilustrado e talqualmente mineiro Afonso Arinos de Melo Franco, Guimarães Rosa tomou-se de suas próprias lembranças de adolescente de 16 anos, lembrou-se das palavras que nessa idade dissera em velório de um amigo e as imortalizou no discurso de posse:

"A gente morre é para provar que viveu. Só o epitáfio é fórmula lapidar. [...]"

Aí, no parágrafo seguinte, vêm as palavras que tanto são ditas, reditas e desditas:

"[...] As pessoas não morrem, ficam encantadas."

Naquele 16 de novembro de 1967, dia de sua posse na ABL, Guimarães Rosa fazia referência a seu antecessor, João Neves da Fontoura, que, se vivo fosse, nessa data estaria completando 80 anos ("Soprem-se as oitenta velinhas", escreveu o autor de "Sagarana" no antepenúltimo parágrafo desse discurso).

É impressionante a força, o símbolo e a simbologia, o sentido e o sentimento de certas frases, que saem da situação de palavras estáticas em um papel para o dinamismo e cotidiano das pessoas -- como também ocorre, por exemplo, com o nosso gonçalvino verso "Minha terra tem palmeiras".

As palavras da frase "As pessoas não morrem, ficam encantadas" são apenas seis das 7.808 que constituem os 58 parágrafos do discurso rosiano. Trinta e três letras, em certa ordem, são, daquele discurso, o conjunto de caracteres gráficos que mais se eternizou e se entronizou no adagiário coletivo e popular, em especial nos meios literários, artísticos, intelectuais e culturais em geral. As demais 41.419 letras do discurso de posse de Guimarães Rosa há 52 anos e dois meses, com o devido valor das palavras e frases e parágrafos que formam, terminam por ser -- exageremos... -- a grande moldura e verniz para aquelas pouco mais de trinta letrinhas.

Essa frase -- registra o também mineiro Mauro Lúcio Condé -- originalmente é: "O mundo é mágico: as pessoas não morrem, ficam encantadas", dita pelo jovenzinho Guimarães Rosa, com 16 anos, no velório de um amigo.

Despregadas do papel pela voz e emoção de Guimarães Rosa, essas palavras -- pelo menos essas -- pregaram-se no repertório popular como piolho de cobra em veado e passaram a fazer parte de citações e excitações intelectuais. Claro, o reiterado uso levou ao recatado abuso, e a frase vai sendo "reciclada" de acordo com o (meio) ambiente: "Artistas não morrem, se encantam"; "Poetas não morrem -- encantam-se"... e por aí vai, vamos, vão-se...


Em tempo: pronunciado seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, João Guimarães Rosa morreu três dias depois, em 19 de novembro de 1967.

Como acadêmico, foi imortal por três dias.

Como escritor, não morreu.

Deve durar aí pelo menos meia eternidade...

Praticamente imorrível.




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